bixiga público atuador

[manifesto escrito após primeiro encontro do BIXIGA INSURGENTE, que mais tarde tornou-se REDE SOCIAL BELA VISTA, que aproximou diversos projetos culturais do bairro do Bixiga. Esse manifesto foi publicado no contexto do nosso primeiro Arraiá Junino com uma lista de abaixo assinado para fortalecermos os projetos junto à comunidade do bairro.]

O Bairro do BIXIGA, antes, possessão da escrava alforriada, Libertas, aglutinou toda espécie de ocupação de insurgências, escravos fugidos criando quilombos, como o Saracura, e depois expulsos de suas terras para as cabeças de porco dos porões das casas; imigrantes italianos calabreses trazendo suas artes e ofícios e seus saberes impregnados nos sobradinhos, agora patrimônios da cidade de São Paulo; artistas que aqui plantaram seu samba com a Vai-vai, seus teatros, desde a instalação do TBC na Major Diogo, depois o Sérgio Cardoso, Maria Della Costa e o Teat(r)o Oficina, implantado a 57 anos no bairro, gerando o bairro onde há mais teatros por metro quadrado na cidade; nordestinos de todas as partes com suas mercearias, casas do norte, seus restaurantes, seus forrós; e hoje os imigrantes haitianos e africanos, numa gestação do que é seu maior talento, a de Território de todas as Artes, e da manifestação de todo Phoder Humano.

Toda a expressividade e complexidade da formação original do bairro do BIXIGA é desprezado pelo avanço predatório que a especulação imobiliária vem determinando ao bairro há algumas décadas, e de forma violenta nos dias de hoje. Os modelos de ocupações anárquicas, irregulares e usos híbridos desenharam um bairro de morfologias, estéticas e usos desconcertantes; um corpo urbano que pulsa VIDA! Por isso muitas vezes de difícil leitura para os que legislam para preservar sua configuração e a dinâmica da vida vivida aqui.

O tecido urbano do BIXIGA é cheio de “falhas”, porosidades, gerando sobras no interior das quadras, as quais, no começo da urbanização, permitiam uma ocupação heterogênea de ESPAÇOS COMPARTILHADOS entre as casas, quase como uma co-propriedade. Dos lotes compridos nasceram os cortiços labirínticos, alojando diversas famílias num mesmo lote, numa metástase de ocupações irregulares e ilegais, agregando todo tipo de gente e culturas à margem da centralidade de São Paulo.

Também os imigrantes artesãos passaram a trabalhar seus ofícios nas suas residências e esta combinação de residência-oficina gerou uma tipologia muito particular e consolidou o BIXIGA como bairro de PEDESTRES, já que seus moradores não precisavam de transporte para chegar ao trabalho.

Seus sobrados e suas casas baixas, que ainda permitem que a visão alcance os céus, suas ruas estreitas e sinuosas por causa do seu tecido urbano de diferentes qualidades topográficas, não podem suportar o tráfego intenso demandado pelo processo de verticalização urbanisticamente irresponsável que se implanta hoje no Bairro, sem sua total descaracterização e sombreamento.

Todo este DNA do BIXIGA deve ser considerado para se estudar com rigor artístico os impactos das construções e intervenções que se pretende hoje ali. Toda a lógica ilógica, intuitiva e extremamente viva de sua configuração histórica deve ser evocada para proteger o bairro da violenta descaracterização que o BIXIGA sofre desde a implantação das grandes infra-estruturas viárias, que fez o bairro passar por transformações radicais desde a segunda metade do Século XX; transformações comandadas pelo desejo capital-desenvolvimentista, como a ligação Leste-Oeste, os muitos viadutos, entre eles o elevado sobre a Praça 14 Bis, a instalação do Terminal Bandeira e, atualmente, a verticalização orquestrada pela especulação imobiliária, com a construção em massa de edifícios residenciais voltados exclusivamente para o acumulo de capital e a produção serial de edificações que não constracenam com o contexto urbano nem com todo esse multiverso DNA tão específico que faz do Bixiga o bairro multicultural que é. Esses são exemplos rápidos e complexos em que a melhoria da infra-estrutura de um lado trouxe avanços viários para o carro e por outro desprezou a vitalidade do bairro, e, sobretudo, os estornos imediatos à essas intervenções que o seccionaram. A cicatriz do Minhocão dividiu o bairro em duas partes quase intransponíveis pelo bloqueio de seus fluxos e fluídos, e se fez acompanhar da desmobilização de um território popular, que desvalorizado atiçou a cobiça do mercado imobiliário.

As cicatrizes estão expostas, e excluindo a possibilidade de demolição dessas infra-estruturas, propomos, ao contrário, tomar partido delas para plantar no vão e nos baixosdos viadutos, nos terrenos vazios, equipamentos culturais com destinação pública, num gesto de totemização do trauma urbano produzido durante a ditadura militar, que hoje baixa na ditadura da especulação imobiliária.

E propomos inspirados no DNA do próprio bairro, o abandono de modelos homogêneos e inexpressivos de desenho e ocupação dos espaços públicos.

Chega de obras formalistas e autoritárias de requalificação urbana e de programas genéricos! O que o bairro precisa são lugares onde a população possa confrontar e trocar suas diferenças, por meio de seus variados talentos, lugares que provoquem a manifestação da diversidade e distinção de comportamento e pensamento, na promiscuidade de USOS e CULTURAS.

Na ativação dos espaços públicos do BIXIGA recusamos a lógica unificadora do UM e a ideia de espaço público bem sucedido como aquele que neutraliza as diferenças em nome de uma vaga e abstrata ideia de espaço comum, que insiste em afirmar identidades, produzindo intolerância, mas SIM do espaço que provoque todo tipo de relações entre desiguais, não na prática assistencialista, mas simbólica e estética. Espaço privilegiado para as trocas e fluxos, de Multiplicação do Múltiplo.

Para isso, é preciso suprimir qualquer intervenção de grande escala e que traga em si um programa único, pois elas engessam a imprevisibilidade de determinadas apropriações. Com isso, há que se evitar a repetição de mais um Centro Cultural para as tais “cidades do espetáculo”, evitar a instalação de um novo “parque ou centro temático”, onde o dinheiro público é gasto na implantação de projetos folclóricos, padronizadores e higienistas, que não são apropriados pela população ou dão uma ideia medíocre e restrita de uma determinada cultura ou tradição.

O BIXIGA é um bairro articulado, de usos e expressões estéticas diversas. Os moradores conhecem sua história, sabem e defendem seu patrimônio material e imaterial. Hoje temos instrumentos legislativos que tornam possível desviar o bairro de uma trajetória trágica e mais que isso, numa afinação extraordinária dos teatros, instituições culturais, poder público, moradores com endereço e de rua, o BIXIGA produz, como alternativa à cidademercado, um projeto que nasce da criação coletiva daqueles que cultivam essa terra, numa irrigação concreta e diária e na convicção de contaminar todo corpo integral de São Paulo.


Desde projetos de revitalização de vanguarda, como o quase esquecido Parque da Grota, projetado pelo premiado arquiteto Paulo Mendes da Rocha(1974), e oAnhangabaú da FelizCidade, riscado pela também premiada ‘arquiteto’ Lina Bo Bardie defendido e nutrido pelo Teat(r)o Oficina durante 30 anos, que trata da ocupação pela Cultura do entorno do Teatro Oficina, também projetado por ela e atualmente tornado patrimônio nacional pelo IPHAN.

Também projetos mais recentes como o Corredor Gastronômico, Cultural e de Lazer na Rua 13 de Maio e Avenida 9 de Julho, o Canteiro Aberto da Vila Itororó e oTerreyro Coreográfico, todos na direção de romper o pensamento único sobre o espaço público, o patrimônio, o programa arquitetônico, a sustentabilidade e o mito do progresso
Produzimos o BIXIGA apoiados na reinvenção do espaço público, em direção a uma cidade menos colonizada no seu desenho, pensamento, comportamento e estética, onde a abstrata ideia de segurança, baseada em muros e grades,não é o super-objetivo, este mito construído e muito bem aproveitado pelo mercado imobiliário, que vem numa alucinada linha de montagem de fortificações na cidade, sacrificando o que resta de espaço público e alimentando a ágorafobia! Onde também, o consumo, não é o super objetivo e sim o prazer de construir e cultivar a cidade e gozar deste resultado coletivamente. Num GOZO público!